Vera Maria Haj Mussi Augusto (2017) Educação – Curitiba – Paraná

Sou nascida em Castro, pelo acaso que a carreira de promotor de meu pai propiciou. Mas a infância para mim, remete a Cornélio Procópio. Tenho memórias muito felizes deste tempo, tingidas pelo pó vermelho. Ainda guardamos as amizades daquela época, porque verdadeiras, o tempo e distância pouco importam. Lembro do perfume do café, e este é um gatilho que me leva àqueles tempos. É um cheiro que me marcou profundamente. Desde então não admito leite em meu café. Minha bebida é uma homenagem ao trabalho quase ritualizado de colher, secar, peneirar, descascar, à experiência doméstica de torrar e moer o próprio café.

Uma das primeiras memórias que tenho é de meu Pai Felipe, lendo, lendo muito. Isso despertou em mim este desejo pela leitura. Naquele tempo não se colocavam as crianças tão cedo na escola. Meu pai então contratou uma professora particular para atender ao desejo da filha, e aos cinco anos descortinei o universo da leitura, que até hoje me fascina, entretém e desafia. Chegada à época, começaram as tratativas para me internar no Santa Marcelina em São Paulo. Vale o registro que o Norte paranaense era muito mais ligado a São Paulo do que a Curitiba. Novamente meu pai interfere. Como ele se ressentia de sua experiência em internato, não desejava o mesmo para a filha. Foi então, e por este motivo, que nos mudamos para Curitiba.

Fui estudar no Divina Providência. Ótimo colégio, que foi muito bom para mim, mas de um início um pouco traumático. Eu era uma menina do interior que puxava os “erres”. A despeito do que uma freira identificou como caipirismo, tirava excelentes notas e estava mais adiantada do que as alunas desta freira. Minha irmã Eneida, dois anos mais nova, sempre foi muito retraída. Por conta disso eu a levava a sua sala e esperava sua professora chegar. Outra feira, esta um amor de pessoa. Minha professora de então, não sem certo sadismo, descontava pontos por meu atraso, a despeito de conhecer toda a situação. Era outra época, os pais não interferiam na relação escola aluno. Tínhamos que lidar com isso.

Naquela época fazia-se exame de admissão ao ginásio. Eu e mais duas alunas pulamos o 5º ano. Quis então fazer o Normal, que era o que as meninas faziam. Fui então para o Sion. Paralelamente ao curso, sempre me voluntariei para as mais diversas atividades que o Colégio promovia. Desde que estudava no Divina comecei a desenvolver miopia, que se acentuou neste período. Um oftalmologista recomendou então que eu tirasse um ano sem estudar, para tentar conter o avanço. Como era a mais nova da turma não achamos problema. Foi um período em que dava aula particulares. Efetivamente me tornei professora.

Passado este ano decidi-me a cursar uma faculdade. Meu desejo inicial era fazer Direito. Era incentivada pelo meu pai, um homem a frente de seu tempo. Ele costumava repetir que “mulher não precisa casar, mulher precisa estudar”. Mas minha mãe Lilita, era muito conservadora e a faculdade de Direito tinha pouquíssimas mulheres. Pode-se relevar este conservadorismo levando em conta sua história. Minha mãe perdeu a própria mãe aos 8 anos. Meu avô contou com a ajuda das freiras polonesas do Abranches para ajudá-lo a criar sete meninas e um menino. A repressão e os limites foram a forma que ela aprendeu para educar. Entre a faculdade “imprópria” e não estudar acabei num meio termo. Fui estudar História.

Fiz o vestibular e fui aprovada. Na faculdade recebi o convite do professor Loureiro Fernandes para ser sua auxiliar de pesquisa. Nessa mesma época conheci meu marido, num chá de engenharia, que era tradicional na cidade. Com estava noiva e a pesquisa antropológica do prof. Fernandes envolvia viagens a campo para estudar populações indígenas, acabei não aceitando. Não sei dizer se é arrependimento, mas penso que ali abri mão de uma carreira acadêmica.

Continuei a dar aula. Com meu primeiro filho pedi licença. Na sequência tive mais quatro filhos. Foram cinco num intervalo de oito anos, o que resultou no afastamento temporário das salas de aula.

A participação política é algo que vem de família. Meu pai foi prefeito de Jaguariaíva onde nasceu. Nossa vinda para Curitiba foi mediada pelo meu tio José Manoel Ribeiro dos Santos que foi Secretário de Saúde, Deputado e Presidente da Assembleia Legislativa. Também do lado materno, meu tio Washington Mansur foi vereador e teria avançado na carreira não tivesse falecido aos 41 anos. Meu irmão tinha uma militância muito ativa no enfrentamento da ditadura. Foi através dele que no início dos anos 80 fui chamada a contribuir em nos grupos de estudo que iriam gerar o plano de governo de José Richa.

Era um outro tempo, fazíamos política diferente. O plano de governo levou dois anos sendo debatido e gerado. Pensava-se em chegar ao poder para, através da política transformar a vida das pessoas para melhor. E nosso método era a democracia e a afirmação de direitos do cidadão. Inicialmente fui participar do grupo da educação, mas a questão da condição feminina se impôs. As meninas de hoje não tem noção, mas muito da possibilidade de igualdade de gênero foi conquistada no processo de redemocratização do Brasil.

Com a vitória do PMDB em 1982 assumem o Estado e a Prefeitura de Curitiba, José Richa e Maurício Fruet. São criados os primeiros Conselhos da Condição Feminina do Brasil dentro do aparato oficial. Ainda estávamos sob a ditadura Federal, apesar de ocupar o poder no estado. A história escrita em São Paulo e Rio de Janeiro esquece mas, pela posição que ocupávamos, iniciou-se por aqui o movimento Diretas Já. Com a derrota no Congresso Nacional, passamos a construir a candidatura de Tancredo Neves. Coube ao Paraná escrever o plano de Energia e Agricultura do novo governo. Era para a questão da condição feminina ficar a cargo do Espirito Santo (o estado, não o da santíssima trindade). Ainda guardo a fitas dos debates com Silvia Pimentel, Fany Taback, Eva Blay, Branca Moreira Alves e Ruth Escobar. Na sequência veio a Constituinte, e aproveitamos este grupo e a pauta de propostas para montar o “lobby do batom”. Éramos um grupo de mulheres empenhadas em garantir na Constituição o direito à igualdade e a garantia do respeito. Com muito trabalho e diálogo conseguimos a inclusão de quase a totalidade da nossa pauta.

Nesse período Roberto Requião havia vencido a eleição para prefeito de Curitiba, e me convidado para ser Secretária da Mulher. Quis a Câmara Municipal que a Secretaria não fosse criada. Passei a atuar então como assessora do Prefeito para as questões que emergiam através da mulheres. Uma das marcas foi inaugurar creches toda quinta feira.

Em 1989 o grupo de mulheres ainda era articulado e conseguimos o compromisso dos dois concorrentes do segundo turno da eleição presidencial: Collor e Lula.

Entre o fim do mandato de Requião na Prefeitura e sua posse no Governo do Estado em 1991, voltei a dar aulas de história. Prática que muito me realiza. Sempre procurei fugir da história linear concentradas em datas decoradas. Em minhas aulas procurava ensinar a dinâmica e a lógica dos acontecimentos, a construção da história nas palavras de Peter Burke. É uma enorme satisfação encontrar ex-alunos e ouvir que passaram a gostar de história a partir das minhas aulas.

Em 1991 assumi a Diretoria Geral da Secretaria de Cultura do Paraná. Função responsável pelos trâmites burocráticos necessários às ações de governo. Vejo este período como um aprendizado que possibilitou anos mais tarde potencializar a ação frente a Secretaria. Quem vê de fora não sabe o trabalho e resiliência necessária para transformar ideias em políticas públicas.

De primeiro de janeiro de 2003 a 31de dezembro de 2010 tive a honra de ser Secretária de Estado da Cultura no Paraná. Um dado que resume nossa gestão foi tema de reportagem na Gazeta do Povo; de todas as secretarias de governo, só a Cultura executou 100% do orçamento planejado todos os anos. Trabalhamos muito, não desperdiçamos um centavo. Todo recurso virou ação cultural para os paranaenses.

Gostaria de ressaltar algumas ações. Sem dúvida nenhuma a grande marca foram as Bibliotecas Cidadãs. Como após o sucesso muitos já assumiram a paternidade devo contar como aconteceu. No âmbito da comemoração dos 150 anos da emancipação do Estado do Paraná, as bibliotecárias da Biblioteca Pública do Paraná sugeriram a construção de bibliotecas em pequenas cidades pelo Estado. Formatamos o programa e levamos ao Governador. A princípio ele não se entusiasmou. Foi então que envolvemos algumas pessoas para convence-lo. A princípio seriam 50 unidades nos municípios de IDH mais baixos. Com o sucesso do programa, e a demanda de quase todos os prefeitos ampliamos para uma biblioteca em cada cidade. Vocês não avaliam a satisfação de constatar a diferença que a atuação política pode fazer. Uma biblioteca nova, com 2.000 títulos atuais, telecentro gratuito, espaço cultural e funcionários treinados, possibilita a pequenas cidades e seus cidadãos acesso a todo um novo universo.

Outra oportunidade foi o ano do Brasil na França, em que os Estados brasileiros foram convidados a expor suas manifestações culturais. Por questões financeiras poucos conseguiram ir. Juntando nossas dificuldades e empenho conseguimos uma bela mostra da nossa identidade. Sob a direção do Jair Mendes e Teresa Cristina Monticelli, fizemos um cenário que eram cortinas simulando as Cataratas do Iguaçu. Foram 3 artistas plásticos e 20 fotógrafos nos representando. Destaco o vídeo “As muitas faces de um só Paraná”, que de forma leve, através do depoimento de crianças, afirmávamos positivamente a nossa identidade multiétnica. Muitos professores franceses solicitaram cópias para usar como material auxiliar no trato das questões de imigração, tão presentes na Europa desde então. Mas o ponto alto foi nossa música, sobretudo a “Orquestra de Viola Caipira” de Cascavel, acho que os franceses não conheciam a sonoridade das doze cordas metálicas. O que foi um alívio para mim, porque tive que bancar a decisão de levar algo mais raiz, contra os protestos da Orquestra Sinfônica. Apresentou-se também o grupo Fato que fazia uma releitura do Fandango, e que contava com o então desconhecido Alexandre Nero e um grupo de Choro (para alegria do Consul).

Tenho muito orgulho da nossa gestão. Não um orgulho de vaidade individual, mas a satisfação de ter catalisado talentos, motivado equipe e produzido tantos programas, como o “Paraná da Gente”, “Caminhos do Paraná”, “Paraná Espanhol”, a aquisição do acervo Davi Carneiro, recuperação de prédios históricos em Paranaguá (biblioteca Mário Lobo) e Morretes , ampliação da divulgação da cultura paranaense no exterior (além de Paris, Córdoba, Salta, Assunção , Kiev)dentre outros .Também tivemos participação ativa no Fórum de Secretários de Cultura sendo eleita duas vezes a presidi-lo .

O que falar da família? Tudo é detalhe se comparado ao amor pelos familiares. Que me desculpem os demais, mas meus filhos e netos são a minha paixão.

Minha mãe Lilita, sempre foi uma mulher conservadora, mas foi se atualizando com o tempo. Como já disse, papai era um homem a frente de seu tempo; sempre muito carinhoso e ponderado, gostava de se posicionar contra o que conversávamos, só para incentivar a fundamentação das nossas opiniões. O que causou certa situação num dos primeiros jantares que tive com meu sogro. Dom Manoel Augusto, migrante português que alcançou sucesso comercial e se tornou típico patriarca, a ponto de trazer os primos de Portugal e dirigir suas vidas. Pois neste jantar “ousei” discordar das suas opiniões. O revelador é que ele nunca desrespeitou minhas opiniões e sempre nos demos bem.

Tenho cinco filhos: Manoel Felipe, Lilita Maria, Gustavo Henrique, Vera Carolina e Paulo Otávio (eles não gostam de nomes duplos e reclamam. até hoje) . E eles me deram oito netos Fernando, Felipe, Mariana, Lucas, Bernardo (neto de minha irmã), Tiago, André e Henrique. Fui casada durante 52 anos com Henrique Augusto (in memorian) e tivemos, Henrique e eu, a felicidade de formarmos essa família. Não tenho vergonha de dizer que sou muito ¨coruja¨ e acho todos maravilhosos. Uma das minhas maiores alegrias são as reuniões quando estamos todos juntos. A vida nos traz surpresas, nem sempre agradáveis, mas os filhos e netos são as bênçãos que Deus nos concede na nossa caminhada.

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