João Batista Neiva (2017) Medicina – Curitiba – Paraná

Era o ano de 1939, tempos difíceis, nem tanto no Brasil, crise política na Europa, prenúncio de conflito.

meus pais vivendo a realidade de um lugarejo recôndito no noroeste do Estado de São Paulo, ele boticário, ela professora.

nasci no último dia de julho, num fim de tarde ensolarado, meu pai como parteiro. Primeiro banho com o revólver na bacia pra ser corajoso. Placenta enterrada no pé de roseira pra ficar bonito. Era assim em Guaricanga.

um mês após, eclodia a segunda grande guerra de caráter mundial, parentes sofrendo na Itália e minha nonna de ouvido colado ao rádio, rosário na mão.

ao fim da guerra, a volta dos pracinhas, muitos deles mutilados, missão cumprida.

já na cidade grande, bairro operário, faltavam alimentos, sobrava camaradagem e a vida passava.

cursei o primário em colégio de freiras; missas, horas santas e procissões, coroinha, cruzado e apóstolo. 1950, Congresso Eucarístico em Sorocaba e eu pajem do cardeal arcebispo.

secundário no afamado colégio estadual Júlio Prestes de Albuquerque em Sorocaba e tempo também para disputar o campeonato de futebol de várzea.

1958, por decisão do meu pai, vim para Curitiba, um dia inteiro de viagem no banco duro do trem, Maria-Fumaça resfolegando nos aclives e nuvens de fagulhas entrando pelas janelas nas curvas intermináveis.

agora em Curitiba, aulas pela manhã no cursinho, tardes e noites estudando no sótão gelado da pensão. Saiu o sol e veio uma vontade insuperável de jogar meu futebol, após seis meses de jejum.

não tive padrinho, mas no alambrado fui muito bem recebido pelo treinador uruguaio, senhor Félix Magno e desde o primeiro treino ganhei meu posto no time juvenil do Coritiba.

de modo que, ao começar o ano seguinte, havia um quarto zagueiro de cabeça raspada no time alviverde. E cento e vinte calouros dissecando cadáveres no subsolo do imponente edifício da Universidade Federal.

nos dois primeiros anos foi possível conciliar futebol com medicina. Mas, quando a ida ao estádio Belfort Duarte passou a ser diária, abdiquei do sonho de todo jovem brasileiro, Pelé um ano mais novo e já campeão mundial. E então, segui meu curso médico, minha vocação.

sabendo das dificuldades financeiras de meus pais, fui morar, na pensão da dona Martha.

dona Martha e seu filho partilhavam o velho casarão, ainda lá, na Carlos Cavalcanti 754, bem defronte à escadaria do Concórdia, com estudantes de várias áreas. Mantinham ordem e respeito, cuidavam da nossa roupa e nos serviam o café da manhã com mousse de banana.

quando cessou meu contrato do Coxa, concorri e fui aceito como Acadêmico Interno Residente do Hospital Evangélico. Éramos dez e participávamos de todas as atividades junto aos doentes.

aproximava-se o final da fase estudantil e eu ainda não me decidira a que rumo tomar. Poderia escolher alguma cidade do interior do Paraná ou continuar meus estudos visando especialização.

Não se falava em Cirurgia Oncológica e eu percebia a grande dificuldade dos nossos cirurgiões em lidar com o problema. Eu, como todos os doutorandos do Brasil, recebera uma carta-convite do Hospital A C Camargo para concorrer a uma vaga para Residência de três anos em Cancerologia.

meu currículo tinha um diferencial que foi decisivo para minha aceitação: meus três anos como Residente Acadêmico, meu maior título.

enquanto professores esquerdistas doutrinavam sobre ideologia política no Hospital de Clínicas eu nadava de braçadas no dia a dia do Hospital Evangélico, mergulhado até o pescoço na prática da Medicina.

Daniel Egg (cirurgia torácica), Manoel Cavalcanti, Rached Smaka, Germano Elke (cirurgia geral), Jayme Guelmann (cirurgia ginecológica e mastologia), Ervino Kompatscher e Hamilton Córdova (ortopedia), Carlos Moreira (oftalmologia), Ralph Kyrmse (otorrino), Moura Brito (cirurgia plástica), José Weniger (pediatria), Joachim Graf (clínica médica), José Domingos (radiologia). José Ephisio Bigarelli e Carlos Jacob (anestesiologia), Jacyr Leal no Banco de Sangue. Era esse o elenco dos meus professores do dia a dia. Mário de Abreu aparecia eventualmente, morava perto, e me chamava para ajudar, suprema honra para mim.

Não havia UTI, então o plantonista, colchonete no chão, ao lado do leito do doente, ali passava a noite toda.

Saíamos com a ambulância multiuso para coletar sangue nas indústrias e trazer verduras do presídio ou recolher donativos.

as últimas semanas de dezembro de 1964, eu, agora médico, passei em plantão permanente, dia e noite. Folga para os médicos que ficavam festejando o Natal com as famílias.

dei-me férias de uma semana inteira em Guaratuba, sozinho no mundo, crianças catando conchinhas na praia com óculos de gatinho.

o ônibus da Graciosa trouxe-me de volta para Curitiba, minha vaga já preenchida por um novo acadêmico, juntei meus pertences na sacola a tiracolo e fui ver minha mãe.

em São Paulo, eu trocaria o ônibus pelo trem da Sorocabana que sairia à noite.

com tempo livre, resolvi conhecer o Hospital do Câncer no bairro da Aclimação. E para meu espanto eu fora aceito como Residente, a carta se extraviara e, coisa de Deus, se eu demorasse mais um dia, teria perdido a vaga.

os três anos que se sucederam foram de uma imersão total na realidade cruel do Imperador de Todos os Males.

Cito alguns nomes de pessoas de maior importância na minha formação profissional: Antonio Prudente e Carmem Annes Dias Prudente, Jorge Fairbanks Barbosa, Dino Bandiera, José Ramos, Alfredo Abrão, Fernando Gentil, Georges Ariê, José Baptista Silva Neto, Alóis Bianchi, Silvio Cavalcanti, Salim Zequi, Moses Zitron, Umberto Torloni, Bindo Guida Filho, Ivo Pitanguí, Euryclides Zerbini, Jacyr Quadros e outros, todos de São Paulo.

Tive a honra de ter sido escolhido para orador de minha turma, não tenho dom de oratória, então li meu texto. Antonio Prudente já havia falecido, mas “nunca dareis por inúteis as palavras que dedicardes aos mortos. É deles, é do seu exemplo que nos vem o melhor da vida…”

Uma vontade indômita de voltar a Curitiba, ao Hospital Evangélico, ao Paraná, agora como “médico de câncer “, não precisei esperar pelos clientes. Eles me esperavam.

a Faculdade Evangélica, nascida do arrojo de Daniel Egg estava apenas começando. Meus primeiros assistentes eram acadêmicos que participavam das operações desde o início do curso.

e a maioria era de pacientes terminais ou casos avançados.

sem a colaboração dos estudantes eu não daria conta de tantos atendimentos, trabalhava muito. Os cuidados com os filhos foram assumidos com toda competência por minha esposa.

Vieram Gisele, Ivana, Rodrigo e Leandro, todos passaram pelo Sion, três se tornaram dentistas, uma é médica. Não cabe aqui discorrer sobre o sucesso dos meus filhos. Mas é inegável que devem o que são ao amor e ao empenho de Josélia, vida totalmente devotada aos filhos e aos netos. Idolatrada por todos, modesta que só.

Daniel Egg, diretor do Hospital e da Faculdade Evangélicos, incluiu no currículo a disciplina de Oncologia, atendendo proposição que eu trouxera de Antonio Carlos de Campos Junqueira, à época presidente da UICC em Genebra (União Internacional para o Controle do Câncer), meu chefe, amigo e companheiro de peladas em São Paulo.

Levei também a sugestão do Junqueira para criar disciplina de Oncologia aos diretores da Federal e da Católica. Nem sequer deram respostas.

E foi assim que me tornei professor de Oncologia da Faculdade Evangélica, cargo hoje ocupado com todo mérito por Dr. João Carlos Simões. Que nominei carinhosamente de minha primeira “metástase“, brilhante oncologista e professor.

passados cinquenta e quatro anos desde a minha diplomação pela Universidade Federal do Paraná, hoje o que se vê é o enorme salto que ocorreu no atendimento aos portadores de neoplasias.

Equipamentos de última geração e sobretudo o aumento exponencial de jovens médicos abraçando esta especialidade.

Acredito que se fosse possível reduzir a verba da pesquisa para a cura e se mais recursos fossem destinados à prevenção ativa, tudo seria bem melhor.

fico sonhando com viaturas modernas, equipadas com raios x de tórax e de mamas, exames ginecológicos e endoscópicos, peregrinando por nosso imenso Paraná, atendendo nos grotões distantes, levando os recursos para muitos, que só vão aos médicos quando a doença já se alastrou.

Um pouco de saudosismo. Como é linda a nossa capital! Onde mais tem uma praça entre o teatro Guaíra e o prédio majestoso da Universidade. A rua quinze transformada em calçadão, não mais o Alvoradinha nem o Grande Hotel, nem a sede do Coxa ao lado da Ghignone, ainda a Confeitaria das Famílias, e sem a Clark. As meninas de braços dados e os marmanjos nas portas das lojas assistindo ao desfile. Cadê os cinemas? Sim, o bar Triângulo que nunca falte.

Nas visitas médicas em domicílio, toalha e sabonete novos para o doutor lavar as mãos. A dificuldade para encontrar os endereços (GPS? que é isso?!), lanterna para encontrar o número da casa de madeira, geralmente fundos, lama preta respingando na calça branca e carona para o parente até a farmácia…

Já quase não mais se fazem as grandes mutilações, cirurgias ditas heroicas. Amputação da mama em conjunto com o membro superior, clavícula e escápula incluída(interescapulomamotorácica), esvaziamento pélvico total, amputação inter-íleo-abdominal e hemicorporectomia .

Muitos estômagos foram retirados por úlceras, hoje tratadas com comprimidos.

Hoje, se fala em tratamentos de câncer por crio-ablação, despontando como verdadeiro milagre, abolindo pouco a pouco as mutilações terapêuticas.

Tratamento dos tumores ósseos e de partes moles com rádio e quimioterapia neoadjuvantes, minimizando o porte das intervenções, evitando amputações.

ainda a percorrer longa estrada até que seja possível curar todos os casos de malignidades, mas é inegável a melhora dos resultados. Por quê? Diagnóstico precoce.

indescritível o prazer de atender pacientes, a maioria mulheres, já bem idosas, que tratei há trinta, quarenta anos, vendendo saúde e animação. Ponho uma musiquinha no celular e danço com elas. Maior prazer.

é gratificante saber que as mulheres mais pobres e pouco aculturadas, comparecem regularmente para o exame preventivo ginecológico e a mamografia.

o mesmo não se diga dos homens, sempre relutantes ao exame da próstata.

depois de muita luta, foi abolida a propaganda do cigarro. Não ainda a das bebidas alcóolicas.

triste constatar que áreas onde se plantavam batatas se tornaram produtoras de tabaco.

O próprio cultivo desta planta, as doses cavalares de agrotóxicos, causam doenças hematológicas, inclusive leucemias.

Sempre gostei muito do professor Mario de Abreu, cirurgião geral.

A princípio criticou-me por ser cirurgião oncológico. Mas logo depois passou a convidar-me para ajudá-lo em certos casos.

Hoje, ainda são poucas as instituições destinadas exclusivamente ao tratamento do Câncer, como o Hospital A C Camargo de São Paulo. Mas proliferam os Serviços de Cancerologia nos hospitais gerais: Nossa Senhora das Graças, Evangélico, Angelina Caron e Rocio entre outros.

Meu pleito de gratidão aos meus avós: José Neiva Ferro (português de Vila Real), Jerônima Baptista Ferro, Napoleone Fávero (Pádova) e Olympia Negrini Fávero (Mantova). Meus pais: Godofredo Neiva Ferro e Elisa Fávero Neiva. Minhas irmãs: Marylène Neiva de Macedo e Maria Lúcia Neiva de Lima. Minha esposa: Josélia Maria Gaudêncio Faria Neiva. Meus filhos: Gisele F Neiva Morozowski (professora na University of Michigan, odontóloga), Ivana F Neiva (médica esteticista em Recife), Rodrigo E F Neiva (odontólogo, University of Michigan, University of Florida e agora University of Pennsylvania e Leandro A F Neiva (odontólogo em Curitiba). Meus netos: Matheus, Graham, Raphael, Victoria, Willian, Cindy, Lara, Pedro e Tiago.

Que faz um cirurgião oncológico? Opera tumores de pele e faz reconstruções com enxertos ou retalhos. Remove tumores ósseos e de partes moles. Opera tumores do aparelho digestivo e urinário. Opera no tórax (pulmões e mediastino), tumores das mamas e dos genitais, Todos os tumores da cabeça e pescoço: olhos, boca, nariz e seios paranasais, tireoide, glândulas salivares, faringo-laringectomias, esvaziamentos cervicais e linfadenectomias axilares e inguinais. Não operamos no sistema nervoso central, nem hérnias, varizes e nem plásticas que não sejam reconstrutoras, trabalho não falta.

Nosso objetivo, nem sempre alcançado, mal comparando, é arrancar a erva daninha com as raízes, remover o caranguejo e seus tentáculos com margens de segurança para evitar recidivas.

Nossa esperança é a progressiva resolução dos problemas com mínimo de sequelas.

(A formatação do presente texto é estilo próprio de escrita do autor desse depoimento)

Comments 1

  1. Este ser iluminado é a provisão divina do nosso glorioso criador, Jeová Deus, que o colocou neste planeta para salvar muitas vidas. Minha esposa é uma de seus milhares de pacientes salvos. Gratidão Dr. Neiva!!

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