Carlos Drummond de Andrade escreveu que uma “casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente”, e aconselhou: arrume a casa de tal maneira que sobre tempo para viver e reconhecer nela o seu lugar. Ao entrar na casa da viúva Ragnhild Borgomanero, 81 anos, é possível compreender o que dizia o poeta. Tudo ali faz sentido em relação à história que viveu com o marido Guido. Às fotos, quadros e lembranças das inúmeras viagens que o casal fez, somam-se dezenas de peças de paleontologia e gemologia – duas paixões de Guido abraçadas também pela mulher.
O hobby constituiu a maior coleção particular de fósseis e pedras da América Latina – logo ali, no Alto da Rua XV – e foi também aspecto determinante da história de amor do casal. As prateleiras repletas de ágatas, ametistas, topázios, fósseis de animais extintos, pelos e dentes de mamutes, entre outras relíquias, registram os 42 anos compartilhados e todos os lugares que desbravaram juntos. Poucas casas revelam tanto sobre seus donos.
O acervo dos Borgomanero contém toda sorte de pedras, como ametistas, opalas, topázios e minerais radioativos da Sicília e de Madagascar – graças a isso, a residência é chamada “Vila Ametista”; peças arqueológicas, como copos de vidro e moedas romanas; e fósseis – de longe a seleção mais curiosa -, que incluem um peixe da espécie Enheles audax fossilizado no exato momento em que abocanhava outro de tamanho menor, mais de 50 milhões de anos atrás; e partes de mamutes, como pele, pelos e dentes.
Há também pedaços de âmbar com mosquitos no interior, tal qual o punho da bengala de John Hammond, o bilionário criador do parque de dinossauros no filme Jurassic Park (quem lembra?). Entre as peças mais inusitadas, estão incríveis fezes de dinossauros fossilizadas de 180 milhões de anos – “É uma bela cagada”, gargalha Ragnhild – e um espetacular ninho de ovos de dinossauro.
O ninho foi a peça derradeira da coleção, presente para Guido no aniversário de 80 anos, em 2001. Ragnhild lembra que retornou de uma viagem à Europa com apenas um ovo de dinossauro como presente, o que frustrou o marido. Ele cobiçava o ninho. Desejo atendido, a peça foi enviada de avião pela loja responsável, para aflição do colecionador. “Liguei na alfândega para perguntar o que seria feito quando chegasse uma caixa com um ninho de ovos de dinossauros”, conta com um forte sotaque germânico que 40 anos de Brasil não foram capazes de apagar. No fim, deu tudo certo. Hoje, os oito ovos descansam sobre um banco na sala de estar.
Ragnhild recorda com carinho as tantas histórias presentes nas estantes da sala de estar, onde está exposta a coleção. Conta que o marido era um ávido colecionador e negociador hábil. “Ele era o diplomata, mas o Ministro da Fazenda sempre fui eu”, informa, desconversando sobre o valor investido nas obras.
A coleção, que já foi citada em vários livros especializados, possui mais de mil itens. Devido ao tamanho e valor, a família cogitou transferir o acervo para algum museu administrado por uma entidade pública, mas faltou coragem e preferiram manter em família. Em breve, a coleção será levada para Goiás, onde Alessandro, o único herdeiro, pensa em erguer um museu particular.
Após a morte de Guido, em 2005, Ragnhild decidiu empreender uma nova e solitária aventura. Determinada a preservar e perpetuar as lembranças da vida que compartilhou com o marido, aprendeu a mexer em softwares de áudio e imagem para digitalizar o acervo enorme composto também por fotografias, slides, filmagens e recortes de jornais e revistas acumulados durante décadas. Para tanto, tomou aulas de Photoshop, Audacity (software livre para edição de som) e Adobe Première (programa utilizado para edição de vídeo). “Ainda tenho muito a fazer, mas o descanso fica para depois.” A disciplina germânica explica.
Guido Borgomanero e Ragnhild Gabbe conheceram-se em 1963, em Oslo, na Noruega. Nessa época, ele já era cônsul e havia sido transferido após morar um período em São Paulo. Ela trabalhava como dietóloga em uma universidade e era responsável pela introdução da profissão no país.
Foi o gosto comum pela música clássica que aproximou os dois: quando Guido contou que tocava violino, Ragnhild, inquisidora, perguntou se ele era capaz de tocar a Ciaccona, de Bach, composição bastante difícil. Guido retrucou: não apenas dominava a partitura como também a convidava para um jantar, no qual lhe comprovaria os dotes musicais. Convite aceito. “Mas não estava muito interessada. Eu já tinha mais de 30 anos e ele, mais de 40. Ninguém mais pensava em casar”, lembra ela.
Destino ou acaso, não é possível ter certeza. O fato é que o dia 22 de novembro de 1963, data do encontro, foi também o dia em que o presidente americano John F. Kennedy foi assassinado – acontecimento que abalou o mundo inteiro. Ragnhild lembra que os dois ficaram muito assustados com a notícia, “então caímos nos braços um do outro”. Uma vez que isso tenha ocorrido, separaram-se tão poucas vezes que, em quatro décadas de relacionamento, Guido lhe escreveu, “em um alemão perfeito”, apenas duas cartas guardadas até hoje, nas quais pedia que a então namorada cuidasse bem do seu coração, frágil e delicado, que agora lhe pertencia. Romântico, aos amigos Guido costumava dizer que se sentia doente quando longe de Ragnhild.
Casaram-se em 1966 e rumaram à Roma. Independente, a alemã de feições rígidas e porte elegante não esconde a dificuldade da adaptação de mulher trabalhadora para esposa – “Escolher foi duro. Gostava muito da minha profissão e não sabia pedir dinheiro, pois sempre ganhei o meu”. Entretanto, não há resquício de arrependimento no relato. De espírito afeito às aventuras, Ragnhild viveu a maior delas por amor – e pelo mundo.
Ao lado de Guido, viveram em Roma, Sofia (Bulgária) e, finalmente, Curitiba, cidade que ela afirma adorar. “Sou otimista. Encontraria charme até no deserto, se precisasse”. Viajantes assíduos, conheceram dezenas de outros países, como Rússia, Islândia, França, Espanha, Algéria e Estados Unidos. Acompanhar o ritmo de Guido jamais foi um fardo. “Nunca tive temperamento para ficar um mês na praia sem fazer nada”, conclui ela. Juntos, estavam constantemente estudando e aprimorando o diálogo. “Nosso convívio era fácil. E só fez melhorar com a maturidade. Quanto mais lembro, mais bonito é”.
O casamento de Guido e Ragnhild foi marcado pelo companheirismo e pela complementaridade entre o espírito italiano dele e o alemão, dela. “Nossa vida foi construída a dois. Não me casei para fazer as coisas sozinha, nem ele. É como eu digo, um bom casamento é um bom compromisso entre dois egoístas. E ele foi um grande homem, nunca me aborreci na vida, nem com ele, nem comigo mesma. Não conheci o tédio”.
A certeza de ter vivido uma vida plena e o sentimento de que o espírito de Guido está sempre presente na casa são as razões pelas quais ela persevera e não cessa nunca de resgatar a memória dessa história e desse amor.