Jornalista, fotógrafo e colecionador Cid Deren Destefani, autor da coluna “Nostalgia”, publicada pela Gazeta do Povo desde 4 de junho de 1989. Em 2014, a página comemorou 25 anos de circulação, ultrapassando 1,1 mil edições. O material era todo retirado do acervo pessoal de Destefani – formado por mais 500 mil imagens, um dos maiores e mais importantes do gênero no país.
A coleção de fotografias antigas de Cid Destefani teve início em 1959, quando – free-lancer na campanha política do deputado federal Accioly Filho – encontrou no sótão do comitê, no Centro, 13 chapas de vidro da então extinta Foto Kabsa. Recolheu-as, fazendo do resgate de imagens pilhadas uma prática. Na década de 1970, o acervo – então acrescido de outras contribuições – seria vitaminado por duas novas séries: 1) a reprodução autorizada de 1,6 mil fotos e cartões-postais que pertenciam à célebre professora Júlia Wanderley Petrich (1874-1917) – as imagens cobriam 40 anos entre o fim do século 19 e início do 20; 2) a doação de 200 mil negativos de autoria do Esperandio Domingos Foggiato (1887-1970), sendo 40 mil de futebol.
Fotógrafo de órgãos do Estado – como o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP da era Vargas – e abastecedor de clichês para jornais paranaenses, Foggiato era um documentarista com fartos recursos técnicos. Fazia o tipo perseverante. Fotografou, por exemplo, a passagem do Hindenburg, em 1936, e conhecia toda a cozinha da imprensa – da sala de impressão aos laboratórios. Parecia estar em todos os lugares. Sua família viu em Cid um continuador da tarefa. E Cid viu no gigantesco acervo a ele confiado a confirmação de que deveria se dedicar a um ofício para o qual demonstrou pendores ainda na infância – o de memorialista. Tinha tamanho apetite por imagens antigas que mais do que duplicou sua coleção a partir daí. A cada nova foto, somava também informações saborosas – das de grosso calibre à de baixo ventre, essas só reveladas aos mais próximos. Tornou-se um craque.
Ainda nos anos 1970. ganhou fama de imbatível. Gostava de contar que foi corrigido uma única vez, por um leitor, num “escorregão” de data – foi um dos campeões de cartas da Gazeta do Povo. Suas páginas dominicais ganharam colecionadores e eram expostas em murais de escolas públicas. Orgulhava-se. Gostava de contar que recebeu tapas nas costas mesmo dos que teriam razões para lhe soltar os cachorros por ausência de método acadêmico, a exemplo do historiador Júlio Estrela Moreira (1898-1975), que certa feita telefonou para parabenizá-lo, eras e eras antes de “Nostalgia” nascer e se tornar uma marca editorial.
Em conversa, contava não ver mistério em sua assombrosa capacidade de armazenar historietas, mas acabava se desdizendo. A falas tantas, admitia espanto frente a nitidez com que as imagens da infância lhe vinham à mente. Descrevia vizinhanças, número aproximado das placas, sobrenome de moradores e até temperaturas ambientes. O neurologista britânico Oliver Sacks – morto em 30 de agosto – teria adorado estudá-lo.
Em duas longas entrevistas concedidas à Gazeta do Povo – em 2009 e em 2014 – Destefani ajudou a montar um quebra-cabeça sobre sua formação de fotógrafo e historiador diletante. Foi de fato uma “madureza”, como se dizia. Foi estudante mediano do então Colégio Belmiro César. A mãe – dona Josepha – temia que o não desse em nada na vida. O filho, contudo, se formava às margens da sala de aula, memorizando de forma admirável o que via e ouvia na rua e em casa. Eram muitas suas fontes. A primeira, com folga, a sapataria do pai – Amadeu Destefani – na Avenida Batel 1.202.
Seu Lulo, como o chamavam, tinha queda para contação de causos, recolhidos em suas longas estiradas na Serra do Mar – até 15 dias sem dar notícias, para desespero da família. Descrentes com o que ouviam, os fregueses chamavam o estabelecimento de “Academia da Mentira do Batel”, mas tudo indica que preferiam as lorotas do sapateiro às dramáticas novelas de rádio. De troco, os graúdos do bairro também deitavam no balcão fofocas sobre falências, adultérios e contendas entre casais que, em fúria, não se furtavam de jogar a louça inglesa no chão. Não havia tédio na Sapataria do Lulo.
O Cid historiador se graduou no balcão – mas também nos jardins e na cozinha das mansões do bairro que amou. As ligações entre suas origens de imigração e a alta sociedade vinham de longe. No fin de siècle, seus avós paternos, Marco Giuseppe e Mariana, serviram ao Barão do Serro Azul. Nonno Marco, às escondidas, fazia fezinhas do nascente jogo do bicho para a baronesa Maria José Correia, a dona Coca. Estirpes, dinastias, genealogias, naturalmente desciam dos petit pavês do Centro às ruelas sem asfalto da Baixada, onde os Deren viviam. O mesmo acontecia na Casa Gomm – palco da aristocracia local a partir da década de 1910. Ali, uma tia de Cid servia como governanta.
O repertório do jornalista não vinha só das relações de trabalho – vinha também da camaradagem. Os Destefani, vizinhos de rua com a família Canet, tinham amizade com Chico Marceneiro, dono do Parque de Diversões Coliseu, para citar uma das celebridades da primeira metade do século passado sujo cotidiano cruzava com Amadeu, Josepha, Cid e seu irmão Luiz Carlos. Entre uma circulada e outra nas altas rodas, como se dizia, o futuro autor da página “Nostalgia” conheceu duas pessoas que marcariam suas escolhas: o amigo Manfredo Schiebler e o pintor italiano Guido Viaro.
Quem conheceu o Cid durão – dado a desovar um catecismo de palavrões digno de enrubescer a turma da estiva – não o reconheceria ao ouvi-lo falar do pintor italiano Guido Viaro. Ficava emotivo e solene. Ocuparam o posto de professor e aluno no Belmiro César, mas foram sobretudo observador [Cid] e observado [Viaro]. É lendário que o pintor não deixava escapar um talento. Não deixou passar o guri de canelas cumpridas e jeitão despachado. Reconheceu-lhe o traço e a percepção afiada, o tal “olho bom”, apontando-o como uma promessa da pintura. Mas seria o guri Manfredo Schiebler – dono de uma máquina fotográfica – a ganhar parada. Mostrou-a ao amigo. Cid, em seguida, conseguiu sua primeira Bilora. O resto dá para imaginar.
No meio do caminho veio o período de quartel – no Rio de Janeiro, em 1957, lugar predestinado para um mix de polaco com italiano beirando 1,90 metro – e um estágio como fiscal da prefeitura. Mas nada que vencesse sua atração pelas redações de jornal. Vieram em 1958, em cascatas – a estreia foi na Revista do Rádio e na Gazeta do Povo. A foto do galalau Cid Destefani, montado numa lambreta de reportagem, ou pilotando uma RolleiFlex são retratos de seus anos dourados e ano rebeldes. “Era bem pago. Ganhei dinheiro fazendo o que gostava”, repetia.
Estava escrito – boêmio, briguento, doido por novidades, estava talhado para as lides de um jornal. Desabava de rir ao lembrar do dia em que a avô o viu, de braço dado na XV, com dois violões do teatro rebolado, dentre as muitas trazidas por Paulo Wendt, o Rei da Noite, e similares. Disse “a bênção vó” – ela fez que não ouviu. Os anos eram “prafrentex”, mas não para ela.
Tivesse estrelado um stand-up comedy com os episódios que viveu, faria sucesso. São hilários. Mas Cid passou para a história não só como o sujeito que sabia tudo sobre cada rua e cada pessoa que interessasse em Curitiba. Passou também como um sujeito de poucos, porém eternos amigos. Quem o conhecia, sabia: estava aberto para novas amizades, desde que o aceitassem como era – uma bomba prestes a explodir. Pagava alto pela originalidade. Certa vez, pediu a um repórter da Gazeta que fosse ao Bar do Beto, na Avenida Nossa Senhora Aparecida, pedir clemência. Tinha sido expulso do recinto, por irritar a freguesia. Era o falastrão do boteco – que ficava aberto de madrugada, por isso o seu preferido. A empreitada foi sem sucesso. Beto não se rendeu ao pedido.
Cid continuou a peregrinação pelo Beks – na Brasílio Itiberê, onde era recebido com vivas – ou no Bar do Paulo, na Praça Guanabara. Gostava da noite, seu habitat natural para contar o que sabia. Surpreende que, p*, como dizia, alguns fregueses se chateassem em ouvi-lo. Só ele conseguia temperar o que se aprende nos livros de escola com narrativas que mexiam com o olhar dos leitores. Nada que inventasse. “Eu vi e enxerguei tudo o que conto”, dizia. Difícil duvidar. (texto de José Carlos Fernandes)